Théodore Roussel – “Reading Girl” Robert C. Kirkpatrick
Nos sótãos onde julgamos tudo conhecer, a surpresa acontece em fios de pó; caminho riscado por luz coada pelas janelas esconsas. Do meu, subi a escada de granito e por lá me perdi numa tarde. Abri baús, destapei a cambraia protetora do que fora o meu carrinho de bebé. Abriguei melhor, num merendeiro forrado a chita florida, o mobiliário da «casinha das bonecas». Desdobrei fatos do bebé-chorão, alguns adquiridos na Materna, outros confecionados nos tempos livres da juíza, prima solteira. Nas gavetas e portas da secretária do avô, lá estavam os álbuns filatélicos e numismáticos, mais as partituras das músicas que compunha. Numa estante herdada das tias, desfolhei figurinos de moda do início do século, coleções completas do Reader's Digest, almanaques. Empalidecidos.
Pelo ar abafado daquela tarde quente fechei a porta de acesso e despi a musselina. Do vinil em fila, retirei um do Frank Sinatra. Prendi ao alto o cabelo e, mais livre do que vim ao mundo, destapei sofá para aconchego na leitura. Escolhi o almanaque do ano em que nasci. Conselhos domésticos, regras de etiqueta, mãos-cheias de lugares-comuns e primórdios saborosos dos livros de autoajuda.
_ Quando alguém fizer uma pergunta a que não queira responder, sorria e pergunte: 'Porque quer saber?'
_ Diga "Saúde!" quando alguém espirrar.
_ Case com uma pessoa que goste de conversar. Quando a velhice chega, a capacidade de falar e ouvir é o mais importante.
_ Confie em Deus, mas deixe a casa aferrolhada.
Dicas intemporais! Escorregaram décadas e as atitudes comummente sensatas, seja lá quais forem e não necessariamente minhas, constam do Larousse das Boas Maneiras – a substituição do irritante “santinho”, o rodeio polido da pergunta inconveniente, o essencial duma parceria amorosa, o amanhã que cada humano rege como motor e produto da engrenagem.
CAFÉ DA MANHÃ
Frank Sinatra e Rita Hayworth em “Pal Joey”. Pela qualidade sonora, versão sem legendas mas aprimorada.
Théodore Roussel - Reading Girl
No ensaio “Die Leserin”, Gertrude Lehnert escreveu: “O desenvolvimento da personalidade e da leitura condicionam-se mutuamente”. É tratada a relação erótica das mulheres com a literatura. Inúmeras obras de arte pictórica apresentam mulheres nuas lendo. Como se perante um livro a pele feminina estivesse ao dispor do livro e este lhe atravessasse a pele em percurso linear até ao coração. Até à fantasia. Até aos mais recônditos segredos que nem sob tortura a mulher exporia. A sensibilidade ou a premonição do pintor surge como fonte desta permuta erótica entre o feminino e o livro.
Ler na cama. Corpo nu sob coberta. Despudorado. Excluído o interesse de ser o escritor homem ou mulher. Androgenia perante a leitora. Ela reconhece encontro de almas na força criativa das páginas passadas e por virar. Sua e de quem escreveu. Devaneio que a exalta e, quantas vezes, termina em orgasmo solitário. Refém da leitura, continua sem parança. O cansaço adormece-a e o livro dorme com ela. Calhando no sono surgirem reminiscências do absorvido pelo cérebro, orgásticos instantes acontecem. Raramente só um, mas sucessivos que a esgotam até ao acordar.
Virgina Woolf no livro “Um Quarto que Seja Seu” – “Só quando essa fusão tiver lugar é o que o espírito será inteiramente fecundo e poderá fazer uso de todas as faculdades”. De Ruth Klüger o acrescento: (...)
Nota: há instantes, texto publicado aqui.
CAFÉ DA MANHÃ
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