Autores que não foi possível identificar
Desde o sonho, à ilusão, ao possível foram muitas as etapas. Mulher que amava comboios, mulher apaixonada, aparentemente tranquila, magma perto da superfície, a custo contido. Pelos cabelos negros e olhos imensos, pelo langor dos gestos diziam-na exótica. Suave. Estranha entre pares, a simplicidade, sem querer distante, sobressaía. Farta da diferença, do olhar de baixo para cima dos homens que a rodeavam e, langorosos, lhe endereçavam desejos, cansada da rotina aniquiladora, telefonou:
_ Marque o comboio que sabe. Sugira datas porque qualquer me serve. Não preciso de detalhes, salvo dos horários e voos. Desta, o resto fica por minha conta.
Meia hora passada, soube das minudências. Encafuou no malote de couro, herança do avô, viajante dos sete costados, o máximo/mínimo para a fuga. Dormir nua era vantagem no arrumo - banho aromatizado e nuvem de perfume serviam de camisa de cetim ou de seda ou musselina.
Hesitou em desvirtuar arranhões/registos na mala. Mas teve prazer no cheiro a graxa, na escova de dentes adaptada a espalhá-la, no tempo da secagem, no polimento com a camurça e a escova dos castanhos. Remirou-a. Luzente como jamais a vira quando o avô andarilho a usava. Feliz cada regresso nos olhos da avó. Ocupada com a casa e os filhos, entendia a necessidade do seu homem partir só em aventura longe - nos livros nascia a semente, nos mapas florescia.
Já o comboio era foguete nos trilhos, pela janela largava bagagem invisível, atafulhada de humores descoloridos até ali de chumbo no peso. Sentiu-lhe o olhar antes de visto. Aspirou cheiro a homem cuidado, vagamente madeira, vagamente sândalo. Sentiu o calor do roçar leve, olhou a figura.
Enquanto nos carris galgava viadutos e noite, ela deles sabia pelos brilhos que no camarote cintilavam breves e repetidos, pelo tremor do perfume de sempre - ouro líquido, pele segunda. No meio-sono desassossegado, o p’ra frente inquietava-a mesclado pelo homem que a perturbara. Ele, inquieto como ela, hesitara no bato-não-bato encostado à porta donde quase da mulher sentia o respirar e o voltear no que da cama fazia vezes. Fosse adivinhação ou partida sonâmbula, ela saiu. No corredor, levantou a janela, aspirou fundo o ar que também lhe desnorteava o cabelo, instantes eram passados do homem cuidado, vagamente madeira, vagamente sândalo, hesitante, entrar no compartimento portas adiante.
Acordou-a o aroma de especiarias que Istambul transpirava. Desde logo, soube que lhe pertencia. Vagueou nas ruelas, permitiu-se o luxo do exotismo que brincava com ela e o imaginário ali recuado ao XV lisboeta. Galgou, em corrida, a distância até ao barco, máquina de registos na mão. Barco ia, outro vinha. E ela captava. Na amurada, curiosa, viu as imagens últimas - enquadrado no convés que regressava, fitava-a o homem que no comboio a perturbara. Entendeu como sinal o desencontro. Tonta, sabia, pelo crédito dado à premonição contrária às andanças/surpresas dos futuros.
Com a mala de couro do avô viajante na mão viu o comboio que se despedia. No cais de muitas esperas e partidas, sob a luz poente coada, transpirava no seu pescoço altivo a dádiva ao aroma a madeira, quase sândalo. Parada, deu-se cinco minutos. Nada, a não serem apitos, sons metálicos de ferro sobre aço ou oposto, o afago da solidão em canto do mundo (in)esperado.
Sem retroceder, cidade/vontade em frente. Sentiu vestir-lhe a pele mistura nova: o seu ouro perfumado, o sândalo do homem que a abraçava. A madeira, essa, diluíra-se.
Nota: por desafio amigo, conto inspirado no vídeo a seguir.
CAFÉ DA MANHÃ
Autor que não foi possível identificar
Desde o sonho, à ilusão, ao possível foram muitas as etapas. Mulher que amava comboios, mulher apaixonada, aparentemente tranquila, magma perto da superfície, a custo contido. Pelos cabelos negros e olhos imensos, pelo langor dos gestos diziam-na exótica. Suave. Estranha entre pares, a simplicidade, sem querer distante, sobressaía. Farta da diferença, do olhar de baixo para cima dos homens que a rodeavam e, langorosos, lhe endereçavam desejos, cansada da rotina aniquiladora, telefonou:
_ Marque o comboio que sabe. Sugira datas porque qualquer me serve. Não preciso de detalhes, salvo dos horários e voos. Desta, o resto fica por minha conta.
Meia hora passada, soube das minudências. Encafuou no malote de couro, herança do avô, viajante dos sete costados, o máximo/mínimo para a fuga. Dormir nua era vantagem no arrumo - banho aromatizado e nuvem de perfume serviam de camisa de cetim ou de seda ou musselina.
Hesitou em desvirtuar arranhões/registos na mala. Mas teve prazer no cheiro a graxa, na escova de dentes adaptada a espalhá-la, no tempo da secagem, no polimento com a camurça e a escova dos castanhos. Remirou-a. Luzente como jamais a vira quando o avô andarilho a usava. Feliz cada regresso nos olhos da avó. Ocupada com a casa e os filhos, entendia a necessidade do seu homem partir só em aventura longe - nos livros nascia a semente, nos mapas florescia.
Já o comboio era foguete nos trilhos, pela janela largava bagagem invisível, atafulhada de humores descoloridos até ali de chumbo no peso. Sentiu-lhe o olhar antes de visto. Aspirou cheiro a homem cuidado, vagamente madeira, vagamente sândalo. Sentiu o calor do roçar leve, olhou a figura.
Enquanto nos carris galgava viadutos e noite, ela deles sabia pelos brilhos que no camarote cintilavam breves e repetidos, pelo tremor do perfume de sempre - ouro líquido, pele segunda. No meio-sono desassossegado, o p’ra frente inquietava-a mesclado pelo homem que a perturbara. Ele, inquieto como ela, hesitara no bato-não-bato encostado à porta donde quase da mulher sentia o respirar e o voltear no que da cama fazia vezes. Fosse adivinhação ou partida sonâmbula, ela saiu. No corredor, levantou a janela, aspirou fundo o ar que também lhe desnorteava o cabelo, instantes eram passados do homem cuidado, vagamente madeira, vagamente sândalo, hesitante, entrar no compartimento portas adiante.
Acordou-a o aroma de especiarias que Istambul transpirava. Desde logo, soube que lhe pertencia. Vagueou, nas ruelas, permitiu-se o luxo do exotismo que brincava com ela e o imaginário ali recuado ao XV lisboeta. Galgou, em corrida, a distância até ao barco, máquina de registos instantâneos na mão. Barco ia, outro vinha. E ela captava. Na amurada, curiosa, viu as imagens últimas - enquadrado no convés que regressava, fitava-a o homem que no comboio a perturbara. Entendeu como sinal o desencontro. Tonta, sabia, pelo crédito dado à premonição contrária às andanças/surpresas dos futuros.
Com a mala de couro do avô viajante na mão viu o comboio que se despedia. No cais de muitas esperas e partidas, sob a luz poente coada, transpirava no seu pescoço altivo a dádiva ao aroma a madeira, quase sândalo. Parada, deu-se cinco minutos. Nada, a não serem apitos, sons metálicos de ferro sobre aço ou oposto, o afago da solidão em canto do mundo (in)esperado.
Sem retrodecer, cidade/vontade em frente. Sentiu vestir-lhe a pele mistura nova: o seu ouro perfumado, o sândalo do homem que a abraçava. A madeira, essa, diluíra-se.
Nota: conto, por desafio amigo, inspirado no vídeo a seguir.
CAFÉ DA MANHÃ
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros