Quinta-feira, 5 de Junho de 2014

PORQUE CHOVIA

  

Trish Biddle

 

Casamento breve: dois anos, não mais. Ela trocou-o pela carreira promissora na universidade antes que filhos empatassem o trajeto. Divórcio, ele destroçado. Sofreu as penas comuns de quem ama e é largado. Ano e meio de convalescença. Refugiou-se nos processos e no parceiro do escritório de advogados que ambos dirigiam.

 

Nos dias úteis, o almoço juntava-os, exceto se a toga e a barra os impediam. O Jorge aproveitava o anonimato do restaurante do costume para abrir a alma e ser aliviado com o bom humor do Manuel, homem de têmpera rija feita pelas dificuldades que venceu até obter a licenciatura. Singrou isento de «padrinhos», coisa rara no meio profissional onde se movia. Denodo e trabalho, muito, o segredo.

 

O Jorge nascera em berço composto, educação e valores firmes que o aproximaram do Manuel ainda na faculdade. Partilharam «marranços», o mergulho na revolta estudantil de sessenta e nove, confidências quando envolvidos em ‘saias’ apetitosas, copos raros se para mais do que ‘sebentas’ chegava o pré do Manuel conseguido nas explicações que dava em casa dos alunos. Ao fim do dia, regressava a Queluz e ajudava na taberna/mercearia dos pais, enquanto o Jorge ia de volta para o conforto familiar no Bairro Azul.

 

Nos amores, eram também distintos: o Manuel casara com a Hélia, professora, e vivia o deslumbre da paixão mútua. Mas o Jorge, esse, ainda ruminava o desgosto perseverando num jejum demorado.

 

Mais uns almoços e o Manuel silenciou, admirado, ver o amigo olhar, insistente, para uma hospedeira que a farda da TAP identificava. A mulher nem era bonita, mas tinha atitude, conveio. Continuou a cavaqueira não lhe fosse notada a indiscrição, conquanto o Jorge não desgrudasse até a mulher sair. O “que dizias?” foi significativo. O Manuel, para dentro, sorriu.

 

Dia novo, rotina mesma. Não aparecendo a morena, alta, cabelo preto, comprido, amarrado com um gancho, o Jorge fixava a porta entre duas garfadas. Se a via, tornava-se loquaz na conversa. Cenas repetidas e o Manuel foi a direito: _ Sabes que mais? Ou vais lá tu, ou vou lá eu que este pasmo não pode durar sempre. E o Jorge que “não, um dia, à conta dum nada, viriam à fala.”

 

Era Dezembro. Chovia a rodos. Ao saírem, coincidiu a morena. Enguiçado o guarda-chuva, ela hesitava. Vai daí, o Jorge propõe-lhe abrigo no dele. Um sorriso e que “sim, agradeço até porque fico já ao cimo da rua”. De tão copiosa a chuva, forçou-os a abrigo num vão de escada. Outro abrigo encontrariam, nem meio ano era passado, na Rua Sampaio e Pina. Casados, dois filhos, quatro décadas de amor intocado.

 

O Manuel? A Hélia? Até hoje, casal amigo, íntimo, do Jorge e da Rita.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

publicado por Maria Brojo às 08:23
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Quarta-feira, 20 de Fevereiro de 2013

APETECIA-LHE

 

Trish Biddle 

 

Talvez o fúcsia sintetizado pelo Leonhart Fuchs. No minimalismo, reviver Elsa Schiaparelli e a rivalidade com Coco Chanel entre as duas guerras que rasgaram o mundo. Lembrar Dali, o vestido com lagosta impressa, o gigantismo do chapéu em forma de sapato. Arrojos idos e vindos. Fúcsia – a cor das meias dos toureiros, símbolo que rejeitava da Ibéria. Fascínio pela indecisão entre rosa, lilás e encarnado, pela conjugação da arte e da ciência. Provocação que Yves Saint Laurent retomara e a seduzia ao rever na pantalha das memórias o laço imenso debruçado na Torre Eiffel. Apetecia-lhe o abandono num avião. Que a levasse e depositasse no seizième arrondissement, a Torre em fundo. O fúcsia enlaçado. O rio estrada de «barcos-moscas» para turistas verem dos ícones bordas e fachadas.

 

Apetecia-lhe.

 

CAFÉ DA MANHÃ

 

Yves Saint Laurent                             Moda e Arte - Schiaparelli (1937) com desenho de Dali

 

publicado por Maria Brojo às 09:01
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Terça-feira, 21 de Agosto de 2012

SOMBRA ÚNICA

Trish Biddle

 

Olhavam o céu encostados à grade precária da praia de Carcavelos onde a boca do túnel deita a língua de fora até ao paredão. A noite chegara há horas e enganava o momento –logo a seguir ao jantar. Noites longas, curto o dia que, por volta das quatro, estando farrusco o tempo, pisca olho ensonado ao horizonte que o aguarda para a deita.

Num sítio sem história,– como se a história fosse pertença de pedras ou areia ou betão, vestidos de negrume, miravam, expectantes, a calote salpicada de brilhos - mortos, vivos, ou vá-se lá saber. A distância, devastadora pelos zeros traduzida em quilómetros, é manga de ilusionista que o universo engana. Cavalgando a luz a 300 000 km.s-1, entre o óbito de uma estrela e o desligar da cintilação vista da Terra, demora para cima de século e meio. O mesmo se houver universos com vida -– do jogo de probabilidades, este particular não escapa! Vislumbrem-nos entes distantes e congreguem espantos no mundo deles por existirmos. Talvez enviar mensagem de boa vizinhança aos terrestres. Bons cavalos os levem e carruagens os tragam, rabejando as fêmeas as saias pelo chão e os machos a casaca e o chapéu.” É que a imagem que de nós tiveram reportou-se a mais de cem anos atrás, por via da lonjura que a luz cumpriu.

 

CAFÉ DA TARDE

 

publicado por Maria Brojo às 16:48
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