Fotografia de Eve Arnold
Joyce, o dia 16 de Junho de 1904, dele, em “Ulisses”, as horas parodiadas de Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus nem sempre estimulam leitura continuada. Eve Arnold, a mulher pioneira do fotojornalismo, reteve imagens várias da capitosa loura de Hollywood, Marilyn Monroe. Algumas, ignorando poses, revelam-na entretida com um calhamaço que a alheava do redor: “Ulisses”. Daqui, a pergunta: “Ela leu ou não leu?” Acrescento: atriz até nos momentos devidos ao repouso entre sessões fotográficas?
Décadas após, Richard Brown quis romper o mistério. O professor de Literatura escreveu a Eve Arnold. Que sim, que Marilyn já o lia quando a conheceu. Em voz alta, confessara-lhe, por gostar do estilo, conquanto difícil. A loira mítica assim desmentiu o (pré)conceito de ser apenas um belo corpo exposto generosamente e desprovido de pensar lógico convincente.
Facto é o professor Brown transpor para a atividade letiva o aprendido na investigação: “Ulisses” não deve ser lido com a persistência da água que corre até furar pedra. Abri-lo ao acaso, ler um trecho, depois outro é a recomendação de Brown aos alunos. “Método Marilyn”, chama-lhe.
Nota: texto publicado em "Escrever é Triste".
CAFÉ DA MANHÃ
Marilyn lendo "Ulisses" - fotografia de Eve Arnold
Joyce. Dia 16 de Junho de 1904. Dele, em “Ulisses”, as horas parodiadas de Leopold Bloom, Molly Bloom e Stephen Dedalus nem sempre estimulam leitura continuada. Eve Arnold, a mulher pioneira do fotojornalismo, reteve imagens várias da capitosa loura de Hollywood, Marilyn Monroe. Algumas, ignorando poses, revelam-na entretida com um calhamaço que a alheava do redor: “Ulisses”. Daqui, a pergunta: “Ela leu ou não leu?” Acrescento: atriz até nos momentos de repouso entre sessões fotográficas?
Décadas após, Richard Brown quis romper o mistério. O professor de Literatura escreveu a Eve Arnold. Que sim, que Marilyn já o lia quando a conheceu. Em voz alta, confessara-lhe, por gostar do estilo, conquanto difícil. A loira mítica assim desmentiu o (pré)conceito de ser apenas um belo corpo exposto generosamente e desprovido de pensar lógico convincente.
Facto é o professor Brown transpor para a atividade letiva o aprendido na investigação: “Ulisses” não deve ser lido com a persistência da água que corre até furar pedra. Abri-lo ao acaso, ler um trecho, depois outro, é a recomendação de Brown aos alunos. “Método Marilyn”, chama-lhe.
O mais curioso é o conselho de Brown ter alguma validade. Na fase em que lia quase tudo do recente aparecido nas livrarias — houve cura, felizmente! -, desbravei o “Linguado” do Gunter Grass seguindo o método. Após meia obra digerida no modo tradicional, não resisti: intervalei páginas. Foi o melhor.
CAFÉ DA MANHÃ
Amy Yoes
Em 2010, abri as páginas de tom pérola editadas em formato acima do de bolso e capa rígida. Na segunda, em baixo, a frase de Virgílio Ferreira que há muito tomara como minha pelo apreço ao título duma crónica escrita por Inês Pedrosa – “Da minha língua vê-se o mar”. Após essa, as outras páginas foram debulhadas com demora próxima da fruição dum enamoramento adivinhado, depois, certeza. Recordo a alvura do lugar feito de silêncio em que a paixão nasceu. Outras houve e perduram com idêntico começo: ao escolher um livro que arreda doutros, experimentar alvoroço intenso e premonitório de inúmeros regressos às páginas com tal sortilégio.
É de amor a história de António Mega Ferreira que titulou “Lisboa Song”. Amor a uma cidade, amor a uma mulher estrangeira que pela mão do narrador descobre a novidade duma mancha urbana peculiar, quem a habita, quais as tradições e os costumes que a fazem respirar. Respiração nunca impositiva. Modesta, sim. Por isso, misteriosa. Por isto, encantatória.
A narrativa poética, as imagens recolhidas pela câmara de Amy Yoes não procuram o saudosismo duma Lisboa 'para turista ver' ou daquela outra que foi e já não é. Antes esmiuçam detalhes da contemporaneidade e da arquitetura duma capital onde a miscelânea de gentes é olhada amorosamente. Nessa mole humana, os amantes descobrem-se com langor. O mesmo que transporta para a intimidade a lenta descoberta da cidade, lagarta branca ao sol como a descreveu Allain Tanner no filme “A Cidade Branca”. Neste, é um marinheiro suíço, Bruno Ganz, que, enfastiado da condição de embarcado numa “fábrica flutuante de gente louca”, aluga um quarto em Lisboa apaixonado pela solidão e pelo silêncio, pela brancura, brandura?, soalheira que invade frestas dos espaços, que é refletida nas ruas. No corpo de Rosa, Teresa Madruga, desenha cartas marítimas de amor.
Amy Yoes
Fascinam em “Lisboa Song” o relato das feridas da cidade, saradas ou não, a alma dos materiais e seu parecer, os signos dos tempos idos que o terramoto selou, o baile da luz e das sombras projetadas por telhados e esquinas em vielas esconsas. Na fala/dança erótica entre os amantes, memórias para que a cidade remete – a presença de Scarlatti em vinte ou vinte e um do século dezoito com a finalidade de ensinar música a Dona Maria Bárbara de Bragança, a mitologia de Ulisses.
“ (…) Perguntei-lhe, e depois?, ele fechou os olhos, voltou-se para mim, disse, não há depois, nunca houve depois na vida de Scarlatti, apenas uma frase na margem de um manuscrito, vivi felice, percebes?, é absurdo pensar que este homem sem biografia, entregue aos pequenos arranjos domésticos da sua sobrevivência, tenha podido legar à posteridade uma proposição tão obscena, vivi felice, sejam felizes, como se fosse a coisa mais simples do mundo, e ouve-lhe a música, não vês como até parece verdade? (...) ”
(...)
António Mega Ferreira in “Lisboa Song”
Nota: texto publicado hoje no "Está Escrito".
CAFÉ DA MANHÃ
A segunda sequência de imagens pertence ao filme "Dans la Ville Blanche" de Tanner.
Adoçantes
Peregrinando
Brasileiros