Leszek Sokol
“A única maneira de se suportar a existência consiste em deixar-se arrebatar pela leitura como se numa orgia perpétua”. Frase de Flaubert numa carta enviada a Mario Vargas Llosa que nela se inspiraria para dar título ao seu livro sobre Madame de Bovary, La Orgia Perpetua.
Tomando ‘orgia’ como escondido de culto divino, arredada a literalidade de devassidão, o enleio na leitura renova o mundo pessoal. Permite olhar vidas alheias tão reais quanto real for o desejo de erguer castelo único onde a vida se eleva. Ensina mais sobre os comportamentos do que procissão de quotidianos. Fomenta, não raro, amor pelos outros.
Engana-se quem julga isenta de riscos leitura intensa: desfasamento do real, dos esquissos circunspectos que famílias e sociedades desenham para o indivíduo. Questiona arranjos estabelecidos, regras cimeiras, seja Deus, o dia-a-dia, a família, a Igreja, governos, o arranjo cósmico. Quem manda sabe-o. Aniquila voos dos ideais. Metralha-os. Ou os abate, ou lhes cerceia proliferação. Como se maleita contagiosa requer vacina na forma de estrangulamentos inscritos em leis – a troça social tem efeito igualmente castrador.
Leszek Sokol
Virgínia Woolf coincidia no pensar que talvez e somente Deus fosse benevolente com os leitores viciados em literatura. Escreveu:
“Também eu já por vezes sonhei que quando vier o dia do Juízo Final e os grandes conquistadores e advogados e estadistas vierem receber as suas recompensas – as suas coroas, os seus louros, os seus nomes indelevelmente cinzelados sobre o imperecível mármore -, o Todo-Poderoso virar-se-á então para Pedro e dirá, não sem uma ponta de inveja, quando nos vir chegar com os nossos livros debaixo do braço: «Olha, estes não precisam de recompensa. Nada temos para lhes dar aqui. Eles amavam a leitura.»”
Leszek Sokol
Porém, haja cuidados antes do «Final». Existe caricatura onde uma ama puxa carrinho de bebé enquanto lê. De tão imersa na leitura, nem repara que há muito o bebé caiu. Semelhante com Bluma Lennon. Havia acabado de comprar um livro de Emily Dickinson. Não resistiu à curiosidade e, de imediato, começou a lê-lo alheada das cercanias. Ao atravessar rua, um carro atropelou-a. O mesmo fim de Pierre Curie, Nobel da Física que em 1903 partilhou com a mulher, Marie. Pela tempestade na hora, não consta que lesse ao sair de um almoço na Associação de Professores da Faculdade de Ciências – pensava quiçá no feito e por fazer, no lido e no escrito. Na rua Dauphine, carruagem matou-o instantaneamente. Salvou-o de agonia lenta pela radioatividade do material de trabalho como aconteceria com a sua amada Marie Curie.
Ler e pensar podem ser perigosos. Honrados sejam os não timoratos de vícios estes. E vem lugar-comum: “O que sabe bem ou é pecado ou mata.” Pela leitura morte é rara e o pecado não bate assim.
Nota: há instantes, texto publicado aqui
CAFÉ DA MANHÃ
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